26 de nov. de 2013

1 - Kintsukuroi.

Oi!!!

   Hoje começo o primeiro de dez postagens sobre o pós-quarenta. Tentar colocar aqui um pouco do que aprendi e outro pouco do que espero.

   Começando com esse conceito japonês: Kintsukuroi:



  Reparar com ouro. Perceber que determinadas peças (porcelanas) são tão valiosas, que quando quebram, são reparadas com ouro.Ou seja, uma peça feita de barro tem tanto valor que o ouro é utilizado como argamassa.

   E aí vem a reflexão: o que é tão valioso na vida que mesmo quando quebrado merece ser reconstituído? A família? A amizade? As posses? O conhecimento? A honestidade? O caráter? Não posso deixar de reafirmar aqui que esse blog fala sobre contemporaneidade, ou seja, sobre o que estamos vivendo, mesmo que não entendamos direito o que se passa. Eu diria que a liberdade é nosso bem mais valioso. E não a liberdade stricto senso, mas a existencial. Estamos amarrados em inúmeras regras sociais que nem nos damos contas. Regras que decidem o que é uma família, como conquistar amigos, o que ter ou não ter, o que aprender, como se comportar, e por aí vai. Não que devamos criar uma anarquia e sair fazendo o que der na veneta, mas construir sua vida de acordo com aquilo que você acredita, mantendo um caráter reto. Pois sem caráter, a tendência é fazer pelo caminho mais proveitoso para si independente de terceiros.

   Assim, com livres escolhas, fica mais fácil encontrar os caminhos que levam a sua verdade. Consequentemente, a uma vida livre e mais perto da felicidade.

   Sidnei Akiyoshi.

20 de nov. de 2013

Ok. 40. E agora?

Oi!!!

   Ontem fiz quarenta anos. Então, e agora?

   Sinceramente não sei muito bem, talvez porque não me sinta com quarenta anos. Ter essa cara de trinta e bem poucos ajuda bastante. Mas a referência que temos são nossos pais aos quarenta e eu me vejo bem diferente dele.

Sim, sou eu. Foto: Gerson Roldo.


   Primeiramente o fato de não ter filhos, principalmente adolescentes, faz uma grande diferença. Não ser pai é significativo, não ter que cuidar de alguém ou passar algo para alguém, acredito ser o maior diferencial; nem bom nem ruim, só diferente. Estar inserido no mundo tecnológico também dá a sensação de que estou falando as mesma língua de quem tem vinte anos. Ser uma pessoa que toma cerveja, come sanduíches, chupa balas, toma picolés, tudo com naturalidade, também não me remete ao que seria esse homem de quarenta anos. Pois como disse, esse homem de quarenta idealizado em minha cabeça usa terno, bebe destilado, come "comida", só anda de carro e passa férias com família na praia.

   Mas deixando os estereótipos de lado, os quarenta nos trazem coisas bem interessantes. Você tem mais certeza que vai morrer, pois as pessoas mais velhas com quem convive estão começando a morrer. O tempo tem outra dinâmica, ganha finitude. A relação com as pessoas se torna menos idealizada. Você percebe que as pessoas não são como gostaria que fossem, algumas são mais legais, mas a maioria são bem mesquinhas mesmo; e sim, você tem que conviver com a maioria delas. Você  fica mais egoísta, afinal terá menos tempo e passa a pensar mais em si, e em contrapartida dá mais valor às poucas pessoas que realmente valem a pena dividir seu tempo. E percebe que é hora de colocar tudo numa balança para saber o que já foi feito, o que precisa ser refeito e o que precisará começar a fazer.

   No meu caso específico, acredito estar em vantagem. Tenho uma boa biblioteca (real e existencial), já viajei bastante, já trabalhei em  muitas coisas (boas e ruins), já tive muito dinheiro e nenhum dinheiro, já estudei bastante e com qualidade (mas tem muito mais), já me diverti bastante (na infância e na juventude), e já chorei e amei com intensidade.

   Pensando nisso, existem poucos arrependimentos e muitas comemorações. Assim, o que fazer após os quarenta fica mais fácil, pois eu não preciso viver a idade do lobo e voltar aos vinte para fazer algo que deixei de fazer, e sim utilizar tudo o que vivi até os quarenta para construir essa vida que começa. Como um amigo me disse uma vez: "Você não nasceu com o cu pra lua, mas com todos os órgãos genitais arreganhados para ela". Vou tirar proveito disso e transformar esse segundo tempo numa goleada e fazer desse 5x0 num vira cinco, acaba dez.

   Então. E agora? Agora é hora de começar essa vida sem tantas perspectivas, ser mais cubistas, mas sem ser dadaísta, até chegar numa abstração conceitualista. Então, quer vir junto?

   Sidnei Akiyoshi, agora na versão 4.0.

12 de nov. de 2013

Oi!!!

As vezes não sabemos o que escrever.... talvez já tenha sido escrito...


          TABACARIA
    Não sou nada.
    Nunca serei nada.
    Não posso querer ser nada.
    À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

    Janelas do meu quarto,
    Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
    (E se soubessem quem é, o que saberiam?),
    Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
    Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
    Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
    Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
    Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
    Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

    Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
    Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
    E não tivesse mais irmandade com as coisas
    Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
    A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
    De dentro da minha cabeça,
    E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

    Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
    Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
    À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
    E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

    Falhei em tudo.
    Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
    A aprendizagem que me deram,
    Desci dela pela janela das traseiras da casa.
    Fui até ao campo com grandes propósitos.
    Mas lá encontrei só ervas e árvores,
    E quando havia gente era igual à outra.
    Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

    Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
    Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
    E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
    Gênio? Neste momento
    Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
    E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
    Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
    Não, não creio em mim.
    Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
    Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
    Não, nem em mim...
    Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
    Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
    Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
    Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
    E quem sabe se realizáveis,
    Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
    O mundo é para quem nasce para o conquistar
    E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
    Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
    Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
    Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
    Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
    Ainda que não more nela;
    Serei sempre o que não nasceu para isso;
    Serei sempre só o que tinha qualidades;
    Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
    E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
    E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
    Crer em mim? Não, nem em nada.
    Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
    O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
    E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
    Escravos cardíacos das estrelas,
    Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
    Mas acordamos e ele é opaco,
    Levantamo-nos e ele é alheio,
    Saímos de casa e ele é a terra inteira,
    Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

    (Come chocolates, pequena;
    Come chocolates!
    Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
    Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
    Come, pequena suja, come!
    Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
    Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
    Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

    Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
    A caligrafia rápida destes versos,
    Pórtico partido para o Impossível.
    Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
    Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
    A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
    E fico em casa sem camisa.

    (Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
    Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
    Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
    Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
    Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
    Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
    Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
    Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
    Meu coração é um balde despejado.
    Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
    A mim mesmo e não encontro nada.
    Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
    Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
    Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
    Vejo os cães que também existem,
    E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
    E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

    Vivi, estudei, amei e até cri,
    E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
    Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
    E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
    (Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
    Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
    E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

    Fiz de mim o que não soube
    E o que podia fazer de mim não o fiz.
    O dominó que vesti era errado.
    Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
    Quando quis tirar a máscara,
    Estava pegada à cara.
    Quando a tirei e me vi ao espelho,
    Já tinha envelhecido.
    Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
    Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
    Como um cão tolerado pela gerência
    Por ser inofensivo
    E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

    Essência musical dos meus versos inúteis,
    Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
    E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
    Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
    Como um tapete em que um bêbado tropeça
    Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

    Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
    Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
    E com o desconforto da alma mal-entendendo.
    Ele morrerá e eu morrerei.
    Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
    A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
    Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
    E a língua em que foram escritos os versos.
    Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
    Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
    Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

    Sempre uma coisa defronte da outra,
    Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
    Sempre o impossível tão estúpido como o real,
    Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
    Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

    Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
    E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
    Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
    E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

    Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
    E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
    Sigo o fumo como uma rota própria,
    E gozo, num momento sensitivo e competente,
    A libertação de todas as especulações
    E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

    Depois deito-me para trás na cadeira
    E continuo fumando.
    Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

    (Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
    Talvez fosse feliz.)
    Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
    O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
    Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
    (O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
    Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
    Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
    Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

  • Álvaro de Campos, 15-1-1928